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Cem anos da semana de arte moderna de 1922

     A semana de arte moderna é considerada um marco na história da arte brasileira (fabricado ou não, é o que veremos a seguir). No centenário de sua realização, é nossa tarefa, enquanto marxista-leninistas, fazer uma análise – ainda que breve -, deste evento histórico, buscando suas contradições para ir além de sua aparência superficial. Nesse sentido, lançamos algumas perguntas que, pensamos, devem nortear essa reflexão: o que estava acontecendo no Brasil, para além de São Paulo, e no mundo? Quem participou daquelas noites no Teatro Municipal em fevereiro de 1922? O que propunham? Quais as consequências para a arte brasileira?

I.

     Para responder às perguntas colocadas acima, é preciso localizar a semana no tempo e no espaço. São Paulo passou por um crescimento exponencial a partir da segunda metade do século XIX, consolidando-se como a maior cidade da América do Sul em meados da década de 70 do século XX. Esse crescimento, aparentemente desenfreado e contínuo, fez com que expressões como “a locomotiva do Brasil”, “a cidade que não dorme”, o “progresso e modernidade” entrassem para o imaginário não somente de seus habitantes, além de se transformarem em símbolos da cidade, criadas para projetar sua força dentro do Brasil. O brasão de São Paulo, criado em 1917, e utilizado até hoje pela prefeitura, exprime bem este simbolismo: Non Ducor Duco (não sou conduzido, conduzo). A simbologia reflete o desejo da nascente burguesia paulista – em aliança com os barões do café – de criar um ethos (a partir da elaboração de uma verdadeira mitologia paulista – seja através de uma ideia de modernidade, seja através do resgate da “herança bandeirante”), como forma de expressar sua subjetividade e seu poder perante as outras classes sociais –, além de impor-se politicamente como a liderança do país pós-império.

     O advento da modernidade, o crescimento vertiginoso da cidade (e sua forte urbanização), o desenvolvimento do capitalismo brasileiro e do operariado (principalmente paulista), o fim da Primeira Grande Guerra, da bem-sucedida Revolução Russa em 1917, as greves operárias em São Paulo (também em 1917), o fim da gripe espanhola em 1919 davam a impressão de que os anos 20 seriam a saída de uma década problemática e sombria. Adicionalmente, o desenvolvimento das vanguardas artísticas europeias, como o dadaísmo, futurismo, construtivismo russo, surrealismo, influencia um grupo de artistas e intelectuais ligados à burguesia e que tinham acesso à Europa. Este grupo pretende dar uma nova direção para a arte brasileira, criar uma estética que esteja de acordo com o “moderno” e que seja, ao mesmo tempo, “genuinamente brasileira”.

     Portanto, há neste grupo – formado principalmente por Anita Malfatti, Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Menotti del Picchia e, posteriormente, Graça Aranha e Villa Lobos, entre outros – um desejo em voga desde os tempos do Brasil Império: o entendimento e a criação de uma nacionalidade brasileira. Desejo esse que trazia consigo propostas de transformação artístico-cultural extremamente interessantes e ousadas – Oswald de Andrade chega mesmo a declarar: “um movimento tão sério que é capaz de educar o Brasil e curá-lo no analfabetismo letrado” –, que, no entanto, pecava por considerar São Paulo o “centro do Brasil”.

     Pretendia-se que a Semana fosse um momento de apresentação dos acúmulos da produção artística desse grupo de intelectuais da elite – a exposição de Anita Mafaltti, em 1917, lançamento dos poemas de Manuel Bandeira, também em 1917, artigos de Oswald de Andrade –, numa perspectiva provocativa. Pois faltava, na visão de seus idealizadores, um momento de escândalo e publicidade, conforme a fala de Di Cavalcanti: “uma semana de escândalos literários e artísticos de meter os estribos na barriga da burguesiazinha paulistana”. Essa articulação permite entrever a existência de um verdadeiro movimento artístico que antecedeu em vários anos a realização da Semana de Arte Moderna. Desmistificar a ideia de “origem da arte moderna” na fatídica semana é crucial para irmos além da aparência da “criação do modernismo brasileiro”.

     Apesar do escândalo, parte da burguesia paulista apoia e comparece à Semana de 22. A mídia da época, por sua vez, tece enormes elogios: “a renascença paulista”, “um sopro vital, fremente de uma ressureição de arte” – sempre bom lembrar que vários dos modernistas também eram escritores, colunistas e jornalistas (e que, na São Paulo de 1922, a taxa de analfabetos girava em torno de 70% da população). Essa aliança entre a “burguesia conservadora” e a “intelectualidade progressista”, portanto, atende aos interesses dos primeiros, estimulando o ethos paulista. Por isso, é preciso compreender o que, de fato, está em jogo e como essas mudanças e visões são articuladas. 

     Primeiro, a despeito da “transformação estética” – de que trataremos em seguida –, é importante observar que o movimento modernista paulista, na década de 20, que se propõe “educar o Brasil”, é uma proposta de cima para baixo, desta elite intelectual articulada com a elite econômica. Ainda que o trabalhador comum brasileiro comece a virar tema dos modernistas, continua aparecendo apenas como objeto, sem qualquer agência na produção artística. A produção da população negra, imigrante e indígena é ignorada ou apropriada por essa elite conforme suas expressões de ruptura, tal qual ocorria na Europa com a arte africana.

     A sociedade e a política de São Paulo e do Brasil tornaram-se, enfim, temas da produção artística nacional. Críticas ao conservadorismo das elites cafeicultoras, observações da sociedade e suas contradições, críticas ao mito da origem do brasileiro (as “três raças” – o branco, o indígena e o negro - como apregoado por Varnhagen e pelo Instituto Histórico e Geográfico do Brasileiro, ainda nos tempos de D. Pedro II), tudo isso aparece e se torna presente. Parafraseando Oswald de Andrade, o cotidiano é poesia. Contudo, não há, num primeiro momento, uma conexão, de fato, com o Brasil “plural”. E não e a produção artística desta camada excluída da população que seria mostrada no Teatro Municipal. É sua representação. Não houve uma tentativa de alterar o próprio meio em que a arte era produzida.

     Lima Barreto critica duramente a semana de arte moderna de 22. Segundo Carlos Nelson Coutinho, a crítica de Lima Barreto se deve ao caráter puramente estético dos modernistas paulistas. Enquanto o trabalho de Lima Barreto inaugura a “linha do realismo crítico nacional-popular”, os modernistas de 1922 estão do lado oposto: uma solução (embora necessária) meramente formalista, sem renovação do conteúdo humano. Críticas de outros espectros, principalmente de conservadores (como Monteiro Lobato, que já havia atacado duramente Anita Malfatti), também foram feitas, bem como uma recepção ruim do público presente no Teatro Municipal durante a semana, mas estas estavam mais centradas em uma incompreensão e rejeição das vanguardas artísticas, numa óbvia reação de defesa de uma arte, e de uma sociedade, conservadora. Não nos concentraremos nelas neste texto. Pareceu-nos mais importante observar as contradições e os avanços, para compreender a complexidade da semana de arte moderna de 22 e suas ramificações.

 

II.

Belo da arte: arbitrário, convencional, transitório – questão da moda. Belo da natureza: imutável, objetivo, natural – tem a eternidade que a natureza tiver. Arte não consegue reproduzir natureza, nem este é seu fim. Todos os grandes artistas, ora conscientes (Rafael das Madonas, Rodin do Balzac, Beethoven da Pastoral, Machado de Assis do Brás Cubas), ora inconscientemente (a grande maioria) foram deformadores da natureza. Donde infiro que o belo artístico será tanto mais artístico, tanto mais subjetivo quanto mais se afastar do belo natural. Outros infiram o que quiserem. Pouco me importa. (Mário de Andrade, parte do prefácio de Paulicéia Desvairada, 1921).

     Como dito anteriormente, o grupo dos modernistas pretendia romper com os ditames da arte acadêmica, da Academia de Belas Artes, da ABL (Academia Brasileira de Letras). O rompimento com a “tradição” não significa uma negação desta; pensava-se mais em liberdade nas formas que em negação do movimento anterior. A liberdade rítmica dos versos de Mario de e Oswald de Andrade, a possibilidade de tomar qualquer assunto enquanto tema, a intensidade das cores nos quadros de Anita – e, posteriormente, de Tarsila – e as mudanças e adaptações nas composições de Villa Lobos são alguns exemplos desses novos formatos. Além disso, as produções culturais do interior e do operariado começam a surgir, ressignificadas por esses artistas: Villa Lobos se utiliza de modinhas caipiras e transformava suas melodias livremente; a forma de falar dos paulistas (a mistura com os imigrantes, principalmente italianos) era utilizada nas crônicas e versos, as questões políticas do cotidiano estão colocadas.

     As presenças de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral (posteriormente, já que estava na Europa durante a semana de arte moderna), também indicam um fator interessante. A despeito de todo o conservadorismo, que também afetava o mundo das artes, e tornava algo indigno ensinar uma mulher em diversos ateliês pela Europa, Anita e Tarsila foram reconhecidas enquanto artistas e seu trabalho valorizado – inclusive a própria ideia do trabalho feminino (embora não se possa esquecer o recorte de classe e raça; são mulheres brancas egressas da burguesia, com cabedal para poder custear suas viagens para Europa e para serem vistas como “excêntricas” no interior do mundo artístico). Sua presença, e a de outras mulheres, não significou, de fato, um processo emancipatório no que tange às questões de gênero, mas seu contínuo esforço e o resgate da importância histórica de seus trabalhos – e, de quebra, dos paradigmas artísticos – são influência para gerações seguintes de mulheres que trabalham com arte no país.

     A liberdade de criação, a inspiração e a incorporação das vanguardas europeias, a criação dessa “nova expressão artística brasileira” visava também livrar-se de uma visão colonial, de acordo com a qual tudo no Brasil deveria ser importado (a saber, da Europa). Uma das reverberações mais importantes foi o Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, lançado em 1928. Essa alusão aos povos indígenas, e ao movimento de processar o que vem de fora e transformá-lo em algo “nosso”, segundo a pluralidade brasileira, é uma das marcas mais interessantes da nossa produção artística. Surge aí uma primeira resposta para uma questão que ainda hoje se coloca para um país colonizado: como lidar com uma extensa “invasão” de produções culturais vindas de fora?

Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. (Oswald de Andrade, Manifesto Antropofágico, 1928).

     Após a Semana, o movimento cresce principalmente com a intensa comunicação que vai se estabelecendo com outros intelectuais de outras regiões do país, tais como Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Oscar Niemeyer e Pagu, entre outros, que, com os regionalismos – e não deveria ser o modernismo paulista também um regionalismo? –, fortalecem e amplificam o modernismo brasileiro e o expandem para uma segunda geração mais “consolidada” no cenário nacional. Como disse o professor José Miguel Wisnik em seu artigo para a Folha de São Paulo do dia 13.02.2022, “a força e a fraqueza do grande arco da cultura moderna no Brasil, que vai dos anos 1920 aos 1960, consiste na aliança entre o erudito e o popular com base na mediação da classe média. Esse arco poderoso incluiu a literatura, as artes visuais, a música de concerto e chegou à MPB e ao cinema novo, apontando para um salto social que a ditadura interrompeu”. 

     As influências do modernismo são inúmeras. Há a questão da antropofagia mencionada anteriormente, atualmente muito bem apropriada pelo funk e pelo hip-hop, por exemplo. Há Villa Lobos na trilha sonora de diversos filmes de Glauber Rocha. Oswald aparece em diversas peças teatrais e Elza Soares também o “come e canta”, no álbum A Mulher do Fim do Mundo (2015). Há Carlos Drummond de Andrade, Lygia Clark, a influência direta na Tropicália, em Hélio Oiticica, nas curvas de Oscar Niemeyer, espalhadas pelo Brasil e pelo mundo, para ficar apenas em alguns exemplos.

     A consolidação da segunda geração dos modernistas torna o movimento mais permeável à classe trabalhadora brasileira, e aos estratos médios. A aproximação de diversos artistas e intelectuais com o PCB, como mencionado no texto do camarada Carlos Eduardo Carneiro (1), fortalece a produção ligada aos trabalhadores e uma política emancipadora, que molda algumas produções críticas e, ao mesmo tempo, fornece novos subsídios para o Partido.

     Com o golpe de 1964, o legado da Semana sofre uma “interferência estatal”: as comemorações dos 50 anos têm um forte tom ufanista e de criação da nação, muito mais voltado à direita – uma mitologia que a burguesia nacional, alinhada ao conservadorismo militar, conseguiu impor: exaltava-se muito mais o Monumento às Bandeiras (Brecheret) e a modernidade e urbanização totalmente controlada pelas grandes incorporadoras do que o Manifesto Antropofágico e a contribuição da esquerda brasileira.

     Diversas tentativas de resgate historiográfico e artístico da Semana de 22 tem sido empreendidas após o processo de “redemocratização”. Inúmeras pesquisas e trabalhos tentam jogar nova luz em algo para além do mito da semana de arte moderna de 22. Seu centenário, ainda que simbólico, nos apresenta novos paradigmas, e recorro novamente Wisnik: “por uma ironia cruel, alegórica e quase surrealista, o quiosque em que Moïse foi morto se chama Tropicália. Tropicália, além de nos remeter a Caetano e a Hélio Oiticica, associa-se a Oswald e, em um passo, estamos de volta ao espectro da Semana de Arte Moderna, na encruzilhada entre o século 20 e o 21. Trata-se de transformar o horror em totem. Marcar e venerar o lugar de Moïse. Revirar e reexistir. Tornar inadmissível a normalização do inadmissível. Rasgar o coração, banhar a imensidão do nosso penar na prismatização da luz solar. Em 2022, o Brasil está espremido entre a alta e a baixa antropofagia. Eis a questão”.

III.

     Não é possível negar a importância da semana de 22, mas, passados 100 anos de sua realização, é mais do que necessário não exacerbar o evento em si. Ele é um primeiro acúmulo da produção modernista, realizado com o objetivo de polemizar a elite conservadora paulista. Pode-se dizer que foi um arroubo de jovens burgueses entediados e desvairados, mas reduzi-la a isso é uma simplificação grosseira. Grande parte de sua influência, praticamente mitológica, vem dessa aliança entre a intelectualidade e a burguesia paulistas, mas também de suas inovações e influências nas gerações futuras. Uma análise criteriosa nos ajuda a compreender a importância do evento não só pelas suas realizações, mas também em suas contradições.

     Portanto, como marxista-leninistas que estão atuando em prol da criação do poder popular, devemos enfatizar a necessidade, implícita nesse objetivo, de compreender e incentivar as diversas manifestações artísticas de nosso povo, em toda sua pluralidade. E no que tange à pluralidade, de fato, os modernistas paulistas contribuíram para o debate e para o enriquecimento da arte brasileira, como mais um movimento que, com todas as suas contradições, tenta dar uma resposta à altura do desafio de responder quem somos nós enquanto e o que podemos fazer enquanto nação. Dada a autocrítica feita por diversos modernistas depois da semana de arte moderna de 22, há que se duvidar se eles mesmos considerariam os eventos ocorridos no Teatro Municipal como “nascimento da arte brasileira”.

Rafael Ayres
Coletivo Cultural Vianinha – São Paulo

 

(1) https://pcb.org.br/portal2/28411/centenario-da-semana-de-arte-moderna/

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOAVENTURA, M. E. Semana de Arte Moderna: o que comemorar?. Remate de Males, Campinas, SP, v. 33, n. 1-2, p. 23–29, 2015. DOI: 10.20396/remate.v33i1-2.8636444. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8636444. Acesso em: 16 fev. 2022.

AJZENBERG, E. (2012). A Semana de Arte Moderna de 1922. Revista De Cultura E Extensão USP, 7, 25-29. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9060.v7i0p25-29

SEVCENKO, N. Orfeu Estático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Cia das Letras, 1992.

BENJAMIN, W . Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo. Brasiliense, 2012.

SODRÉ, N. W. A verdade sobre o modernismo. In_ XAVIER, Alberto. (org.) Depoimento de uma geração_ arquitetura moderna brasileira. São Paulo_ Cosac Naify, 2003, p.31-33.

WISNIK, J. M. S. Semana de 22 ainda diz muito sobre a grandeza e a barbárie do Brasil de hoje. Folha de São Paulo, 12 fev. 2022. Caderno Ilustríssima. Disponível em: https://outline.com/hk8Zh4

HISTORIA FM 85: Semana de 22: o evento e seu legado artístico no Brasil. Entrevistada: Profa. Sara Tatiane. Entrevistador: Icles Rodrigues. Fev. 2022. Podcast. Disponível em: https://anchor.fm/historia-fm/episodes/085-Semana-de-22-o-evento-e-seu-legado-artstico-no-Brasil-e1e8pmg . Acesso em 13 fev. 2022.

Disponível, na íntegra, também no site do Jornal O Poder Popular

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