Monumentos, apagamento da memória e resgate da história
31 de julho de 2021
Por Luis Barbosa e Rafael Ayres
Coletivo Cultural Vianinha - SP
Charge por Mauro Iasi
A estátua de Borba Gato, localizada na zona sul de São Paulo, foi queimada em uma ação do movimento Revolução Periférica. E com essa ação, mais uma vez se reabre a discussão sobre a presença desses monumentos nos espaços públicos. E exigem que nós, comunistas, reflitamos e nos posicionemos sobre o assunto. Afinal, também os espaços públicos brasileiros estão repletos de estátuas e monumentos que homenageiam escravistas, genocidas e ditadores. Assim, propomos aqui uma reflexão sobre a importância desses monumentos – e sobre a necessidade de derrubá-los.
A prática da construção de monumentos é antiquíssima, remonta aos primórdios da história humana. Um monumento é, via de regra, uma homenagem, por meio de objetos e/ou construções dispostos em espaços públicos – bustos, estátuas, memoriais, obeliscos etc. – a determinadas personagens históricas (sejam elas personalidades ou representações de um povo em um determinado acontecimento histórico). Implícita ou explicitamente, essas homenagens existem para criar, fortalecer e/ou substituir a memória coletiva de uma determinada população. Memória essa que serve como um dos alicerces da criação da cultura de uma região ou povo, integrada com suas outras manifestações imateriais (como a produção intelectual e artística).
No caso brasileiro, a construção de estátuas e monumentos começa a intensificar-se com a República Velha, seguindo os passos de Paris da Terceira República Francesa, na segunda metade do século XIX. Na capital Rio de Janeiro, foram erigidos monumentos para homenagear os articuladores do novo regime republicano (Benjamin Constant, Marechal Deodoro, entre outros). Já em São Paulo – onde iremos focar nossa análise – a construção foi um pouco diferente, considerando outros elementos formadores da memória coletiva e de uma identidade paulista.
Curiosamente, os dois maiores monumentos em São Paulo durante a República Velha (que contou com três presidentes paulistas) não faziam alusão ao regime republicano. Glória Imortal aos fundadores de São Paulo (concebido em 1913 e erguido em 1925), hoje situada no Pátio do Colégio (marco zero da cidade) homenageia os fundadores (leia-se, os jesuítas) da vila de São Paulo de Piratininga. O outro monumento é o Monumento à Independência (1893), nas margens do riacho Ipiranga. A elite paulista, majoritariamente cafeeira na virada do século XX, entendia que era necessário ressaltar o papel da cidade no desenvolvimento econômico e político do país. A figura ideal para transmitir a imagem desejada pela elite foi então escolhida: o bandeirante.
Ao mesmo tempo que a elite se apressava em destruir as antigas construções de taipa da cidade, para substituir por uma nova modernidade compatível com a “locomotiva do país”, foi-se buscando uma genealogia que demonstrasse que a ancestralidade da elite estava ligada à miscigenação dos bravos bandeirantes e os indígenas (principalmente os tapuias) dos séculos XVI, XVII e XVIII. Aliás, essa dualidade entre modernidade e tradicionalidade é bem forte na elite paulista. Basta pensarmos na celebração dos 400 anos da cidade, em 1954.
Mas voltaremos a isso depois. Essa ancestralidade, que ignorava a população negra, também começa a incorporar o elemento da imigração branca, principalmente italiana (a família Matarazzo, por exemplo). Os italianos tiveram papel fundamental na criação destes monumentos para enaltecer o ideal paulista: foi um italiano que fez o já mencionado Glória Imortal aos fundadores de São Paulo, e foi outro escultor que realizou a estátua de Anhanguera, hoje situada na Avenida Paulista, na frente do parque Trianon, e por fim, temos Victor Brecheret. Bom lembrar que, se da imigração italiana veio mais tradicionalismo alinhado com a elite (italianos que enriqueceram no Brasil, com estímulo do governo – e que dialogavam com o fascismo italiano), ela também trouxe o pensamento anarquista que desembocou na greve de 1917 e na posterior fundação do PCB, em 1922.
O ápice do movimento duplo entre a glória bandeirante e a modernidade econômica (gradualmente substituída do café para o comércio e a produção fabril) chega com a criação do complexo do Ibirapuera (1954) – parte das celebrações dos 400 anos da fundação da cidade – síntese dessa conciliação de aparentes contradições. Temos o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, ao lado do Parque do Ibirapuera, de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, que demonstrava o mais moderno desenho urbano e arquitetônico da década de 50. A partir deste momento, grande parte da monumentalidade da cidade está consolidada (principalmente na sua área central), assim como a memória coletiva idealizada pela burguesia local.
O historiador Jacques Le Goff coloca, em seu livro História e Memória (1990) que a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um objeto de poder. Ou seja, a consolidação da memória coletiva pela elite paulista é a consolidação de seu projeto de poder, projeto de poder de uma burguesia dependente do capital externo. A ideologia trazida pela elite, através de seus monumentos, nos revelam que cultura e qual versão da história estão sendo preservadas e cultuadas: a história dos colonizadores e de seus sucessores, uma cultura racista, elitista e antipopular. Essas deferências estiveram quase sempre ligadas a pretextos de construção de uma ideia de nação brasileira. Exaltando figuras importantes do nosso passado colonial, de nossa longa história escravagista ou de nossas experiências de opressão e ditadura, o que se pretende, há muito, é construir uma narrativa de unidade que exclui os oprimidos – mulheres, indígenas, negros -, alijados do poder de reverenciar sua história e personagens – basta ver o que vem acontecendo nos últimos anos com a Fundação Palmares[1].
Já houve quem viesse a público defender as estátuas, sob o argumento de que colocar abaixo as estátuas não combinaria com a era de tolerância e fim de discriminações pela qual lutam os manifestantes. No entanto, como bem disse Walter Benjamin em suas “Teses sobre o Conceito de História”: Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. Estes monumentos trazem consigo justamente a memória das barbáries por eles cometidas. O monumento, na sua tentativa de glorificar e criar um herói, esconde a barbárie que foi cometida. Ora, como glorificar como “herói” alguém que que passou a vida a escravizar e assassinar indígenas, como o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva Filho, o Anhanguera, assim chamado pelos indígenas por sua fama de assassino (apelido herdado do pai, Anhanguera, em tupi, significa, diabo velho)? Devemos continuar coniventes com os desejos estético-culturais de uma elite que evoca entre suas glórias o assassinato de povos indígenas e a escravidão, e que nos explora até hoje?
Há quem diga que o passado é morto, e o monumento persiste apenas como memória deste passado, instrumento pedagógico para a nossa e para as futuras gerações. Será? O mesmo Benjamin objetou que “assim como ele (o documento de cultura, o monumento) não está livre da barbárie, não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro”. Assim, não é apenas no erigir uma estátua que reside a questão, mas também nos motivos que nos levam a preservá-la, geração após geração. A estátua de Borba Gato foi construída para celebrar o IV Centenário de Santo Amaro (o município foi anexado à cidade de São Paulo em 1935), em 1963. O primeiro registro de ocupação do antigo município, a aldeia tupiniquim Jerubatuba, data do século XVI. Seu líder era Caiubi, irmão do célebre Tibiriçá. Não há estátuas de nenhum dos dois na região.
Uma estátua não é apenas sua matéria. É um símbolo. Sua função, portanto, como descrito anteriormente, é remeter a ideia e valores, caros, senão ao povo que o elabora e transmite no tempo, àqueles que tomaram o poder e o direito de contar sua própria versão da história. O brasão de armas da Polícia Militar do Estado de São Paulo é composto por uma figura de um bandeirante em posição de sentido. As estrelas do brasão remetem a marcos histórico da corporação, entre eles a repressão das greves de 1917 (10a estrela), a repressão à Guerra de Canudos (8a estrela) e a “revolução” de março de 1964 – sim, homenagem à ditadura civil-militar (18a Estrela)[2]. Não é difícil entender os porquês desta simbologia, sabemos a quem a PM serve e o que a PM protege.
Como defensores de uma cultura popular e militantes na luta pela criação do poder popular, entendemos que é nossa função expor as barbáries cometidas por estes “heróis” contra as populações que ainda sofrem a continuidade do genocídio iniciado com a chegada dos portugueses em 1500 e, paralelamente, são vítimas de um verdadeiro “epistemicídio” – a homenagem a essas figuras questionáveis é o apagamento das culturas oprimidas, para além da crueldade que é conviver com imagens dos seus opressores espalhados pelo país. A própria normalização destes monumentos – “estátuas incorporadas na paisagem, ninguém presta atenção”, disseram alguns artistas – é mais um sinal de como a burguesia acolhe e mistifica a barbárie diariamente infligida aos trabalhadores.
A luta pela construção do poder popular passa pela retomada de nossa história e de nossa cultura. É preciso travar abertamente essa guerra de narrativas, especialmente contra a extrema direita e seu revisionismo tosco. Mas também contra uma certa centro-esquerda liberal, que, numa suposta defesa da pluralidade e dos direitos humanos, insiste em espalhar um anticomunismo, provando que não estudou a história do nazifascismo do século XX. É uma luta árdua, que deve ser travada, mesmo contra os grupos que, eventualmente, tornam-se nossos aliados táticos em momentos específicos. Mas não nos enganemos: são reformistas que permitem a supressão de nossa história e cultura sob o ideário de uma “diversidade” liberal, controlado pelo estado burguês.
Retornemos a Benjamin e recordemos seu aviso de que o “perigo ameaça tanto o conteúdo dado da tradição quanto seus destinatários. Para ambos o perigo é único e o mesmo: deixar-se transformar em instrumento da classe dominante”. Abdicar da luta contra esses símbolos explícitos da opressão, portanto, é abdicar da nossa própria cultura e de nosso histórico de lutas. Não podemos permitir o apagamento de nossa memória. Não podemos deixar que nossas lutas se tornem tão somente entretenimento para a classe dominante. Como diz Le Goff, devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.
E, finalmente, deixar nas mãos do Estado Burguês a decisão sobre a remoção das estátuas é pedir para bloquear a vontade e a ação dos povos oprimidos no resgate de sua memória. O Estado, tal qual como é ele constituído dentro da democracia liberal, é insuficiente para lidar com o simbolismo (e porque não, a libido) desta questão. Marx já falava, na Questão Judaica (1843) que “O Estado político acabado é, pela própria essência, a vida genérica do homem em oposição a sua vida material. Todas as premissas desta vida egoísta permanecem de pé à margem da esfera estatal, na sociedade civil, porém, como qualidade desta. (…) no Estado, onde o homem é considerado como um ser genérico, ele é o membro imaginário de uma soberania imaginária, acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de uma generalidade irreal. É certo que, com o Estado efetuando a remoção das estátuas (caso aprovado pela tecnocracia contida dentro dele), a faísca da revolta e da mudança é subitamente censurada e domesticada por este Estado, agindo no nome da sociedade abstrata, sob forma de “concessão ao povo”. Os oprimidos devem exercer papel de liderança fundamental – e, diríamos, catártico – na derrubada desses monumentos que representam o descaso com nossa cultura.
Inspiremos-nos nas manifestações de agora, nas manifestações do passado, em todo o histórico de lutas da classe trabalhadora e dos povos oprimidos. Inspiremos-nos na derrubada da estátua de Napoleão na Praça de Vendôme, durante a Comuna de Paris. Sejamos agora os criadores de nossa própria história.
[1] A Fundação Palmares, criada para “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira” vem sofrendo diversos ataques desde a nomeação de Sérgio Camargo para sua presidência. Repetidamente, o novo presidente da Fundação tem desqualificado o movimento negro, tentando remover conquistas históricas como as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas ou a recusa de celebrar o Dia da Consciência Negra. Esta tentativa de apagamento presta serviço a uma ideologia reacionária e obsoleta, que insiste em construir o mito da “nação brasileira” como uma identidade homogênea.
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